“O que eu achava infindável tinha chegado ao fim. Um mundo se acabava, em silêncio. Olhei novamente pela janela. A luz que orlava a cortina tinha ficado mais forte, uma luz que tremulava ao mesmo tempo em que ficava mais forte, é era como se algum ser radioso avançasse para a casa pela relva cinzenta e pelo pátio coberto de musgo, com as grandes asas frementes bem abertas; e, esperando sua chegada, sempre à espera, imergi sem perceber no sono” (Posição Kindle 3857).
Luz Antiga é o terceiro e último livro da trilogia Alex Cleaver e, na minha opinião, o melhor, mais bonito e mais poético dos três. É um romance que fala sobre a doce memória do grande amor da infância, vivido por Cleave que, aos 15 anos, se envolve com Celia Gray, 20 anos mais velha, casada e mãe de dois filhos, um deles, inclusive, amigo de Alex.
Passadas várias décadas, o ator decadente passa em revista as memórias daquele verão distante, intervaladas pela ainda viva dor da perda de sua filha Cass, 10 anos antes (tema do livro dois, “Sudário”), morta nas águas azul-turquesa de Portovenere, Ligúria, Itália e pela tentativa de entender porquê um tal Axel Vander parece se imiscuir nessa tragédia familiar.
Eu tenho cá para mim que John Banville tem a melhor pena para escrever sobre perdas e as lembranças boas (e não menos tristes) delas. O autor gosta de operar sobre os equívocos daquelas memórias que julgamos serem exatamente o que aconteceu, eclipsadas pelo nosso olhar e nossa emoção. O que é um fato, sobretudo quando olho para a minha própria coleção de memórias, muitas delas amarelecidas, carcomidas e distantes, tão distantes que há muito se foram as cores da nitidez e da certeza. Enfim.
Fazia muito não lia um livro que deveras me empolgasse tanto: e sempre achei em Banville, autor de “O mar”, outra obra necessária, esse escritor soberbo, uma ponte para esta beleza literária, dos amores que deixamos para trás, das certezas incertas, do equívoco da existência. Ciao!
“Raiva, raiva e medo, esses são os combustíveis que me movem, misturados em igual medida: raiva por não ser o que não sou, medo de descobrirem o que sou. Se um dia uma ou outra dessas forças se exaurir, o violento equilíbrio que me sustenta irá para o espaço e desmoronarei” (Posição Kindle 1058).
Se em “Eclipse”, John Banville, o autor do magistral “O mar”, compôs uma narrativa triste (sempre, aliás), meio fantasmagórica de um ator decadente que, ao não saber mais atuar nos palcos, vive se escondendo na vida real sob a capa do personagem mais apropriado para a ocasião, em “Sudário”, o volume dois dessa “trilogia Alex Cleave” vai narrar a vida de um homem que assumiu a identidade de outra pessoa por décadas.
Não sabemos exatamente quem está por trás de Axel Vander, o verdadeiro, morto há décadas, mas seguimos seus passos, sua trajetória como escritor, as muitas mulheres que seduziu e de quem acabou sendo odiado por muitas delas, um homem de certa forma arrogante, pedante, envolto e carcomido pelos fantasmas do seu passado inexplicado.
Ele está confortável no papel que soube desempenhar por anos, até que Cassandra Cleave (será a mesma que aparece em Eclipse?), pesquisadora literária, junta os pontos e descobre o segredo por anos ignorado. Cass acaba se envolvendo com o falso Vander, muitos anos mais velho que ela, com quem vive um romance complexo, onde ambos têm de lidar sobre os meandros da culpa, do engano e da falsa aparência.
Não por acaso o livro se chama Sudário, o incongruente e contestado manto que teria sido usado para cobrir o corpo morto de Jesus, para explorar a capa do Vander copiado. Ele vai revelando em camadas e cenas temporais circulares a multidão de equívocos, de escolhas erradas, quase sempre envoltas pelo desejo fescenino com o qual se nutre e, por fim, a descoberta do amor que sente por Cass. A derrocada trágica do volume é narrada com as últimas páginas, um verdadeiro exercício de boa literatura, que me agradou demais e que já me fez iniciar o terceiro volume, “Luz antiga”. Vejamos.
“Quando o coração dela se move, o meu é puxado junto. Como dois botes presos por uma corda. Mesmo querendo cortá-la, não encontro em lugar nenhum uma faca que possa fazer isso” (pág 119/iBooks).
Neste volume, Murakami reúne sete histórias curtas, sete contos, por assim dizer, onde, além de misturar os elementos musicais mesclados à paisagem da plaga japonesa, todos falam de alguma forma de solidão e da grande dificuldade que é entender-se com outra pessoa.
Todos tem um grau de inventividade que não costumamos achar em historietas do gênero, mas ele como que consegue captar a forma com que a solidão e o receio de se abrir com o próximo impedem o desenrolar dos relacionamentos. Esse traço eu tinha percebido quando li outro livro dele, no caso o “Incolor Tsukuru Tazaki…”, a saga do rapaz insípido que busca compreender as razões pelas quais fora abandonado pelos amigos ainda na adolescência. É uma escrita nostálgica, simbolista e cinzenta.
Não diferente, os contos de “Homens sem mulheres” expressam também essa mesma urgência inacabada. Os personagens buscam refúgio no sexo fugaz, na ressignificação da própria existência, no silêncio musical de uma tarde chuvosa. Eles anseiam por coisas indizíveis, anelam se locupletar mas, apesar do expediente da palavra dita, preferem calar-se na muda resignação onde parece (só parece) encontrarem certo paz.
Em coletâneas assim, é comum elegermos aqueles textos que julgamos gostar mais. Eu particularmente fui tocado por “Drive my car”, a história de um ator que teve a carteira de motorista suspensa, contrata uma motorista a quem acaba confessando a experiência de se aproximar do último amante da sua esposa, já falecida, para entender porque ela o traía. Já outro conto do livro, “Órgão independente”, narra o trágico fim de um médico que definha de amor pela ingrata mulher que o engana e lhe subtrai grande soma de dinheiro, levando-o a um quadro de inanição aguda. E, claro, o próprio conto que dá título ao volume, “Homens sem mulheres”, que narra a história de um homem que, ao ser acordado no meio da noite pelo marido de uma antiga namorada dos tempos de colégio, elabora uma interesse teoria sobre o porquê de as mulheres se afastarem inapelavelmente dos homens. Para mim, este o mais poético e bonito de todos. Espia:
“Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres. Esse dia chegará subitamente, sem nenhum aviso prévio nem sinal, sem premonição nem pressentimento, sem uma tosse que seja ou uma batida na porta. Ao virar a esquina, você vai descobrir que já está ali. Mas não poderá voltar atrás. Uma vez que virar a esquina, será o único mundo para você. Nesse mundo você estará entre os “homens sem mulheres”. Em um plural infinitamente indiferente” (pág 226/iBooks).
Como se viu nessas parcas linhas, o título não é tão fidedigno em seu trato, já que não fala somente de homens solitários: as mulheres tem um espaço interessante aqui (não subalterno), já que Murakami dá pinceladas do não menos doloroso viés da solidão feminina, ainda que de forma implícita, mas fortemente presente, formando um conjunto compacto mas profundo em suas reflexões.
Os demais contos, “Yesterday”, “Sherazade”, “Kino” e “Sansa apaixonado” não são ruins; pelo contrário, fecham o conjunto com perfeição e, me parece, um pouco menos emoldurados das pitadas fantásticas que Murakami parece operar em seus romances. Bom livro e sigamos o baile!
“No instante em que chegamos à Rive droite, após ter atravessado a pont du Carrousel e os arcos do Louvre, dou um suspiro de alívio. Nada mais tenho a temer. Deixamos para trás a zona perigosa. Sei bem que se trata apenas de uma trégua. Um dia terei de prestar contas. Experimento um sentimento de culpa cujo motivo permanece vago: um crime do qual participei na qualidade de cúmplice ou de testemunha, não saberia dizer com exatidão” (Posição Kindle 810).
“Flores da ruína” é o segundo volume da chamada Trilogia Essencial, do escritor francês Patrick Modiano, prêmio Nobel de 2014. É o terceiro livro dele que leio (os outros foram o muito bom “Para você não se perder no bairro” e o bom “Remissão da pena”, justamente o primeiro da trilogia), mas a mesma temática segue o estilo do autor, acostumado a lidar em seus romances com memórias antigas, reconstruídas graças ao referencial geográfico da cidade de Paris, onde os livros são ambientados.
Neste volume, Modiano busca reconstruir um evento trágico no distante ano de 1933, quando ocorreu o duplo suicídio de um jovem casal na periferia parisiense. É uma tarefa hercúlea, tendo em vista terem passado cerca de 30 anos do acontecido, halo temporal suficientemente grande até mesmo para a memória, essa pregadora de peças.
Narrado em primeira pessoa, Modiano utiliza a técnica da pergunta para ir reconstruindo aquele evento onde o autor entremeia as próprias memórias, que se misturam àquela em particular, sendo muitas delas ligadas a andanças aleatórias pelos “arrondissement” da Paris dos anos 30, levando o leitor a círculos e mais círculos (uma alusão à forma de caracol de Paris?) cujas camadas vão rejuvenescendo a tinta da memória.
Modiano demonstra sua habilidade narrativa com o conhecimento de fato da cidade. Você como que se vê errando por Paris, flanando pelas margens do Sena, pelos boulevards, pelas places, absorvendo a atmosfera local. E nessas andanças, ele busca exorcizar os fantasmas que inevitavelmente levam-no a recobrar a culpa por, de alguma forma, ter sido cúmplice daquele crime do qual jamais se esqueceu, fazendo uma espécie de registro memorialístico misturado com romance policial.
Olhando os comentários no Skoob sobre este livro, me chamou a atenção pela quantidade de leitores frustrados com a leitura de “Flores da ruína”. Bem, não os culpo. De fato, a escrita de Modiano pode não ser uma boa para os leitores que preferem estórias mais dinâmicas, com mais cores e entreveros. Isso porque, à semelhança de um John Banville ou um Julian Barnes, Patrick Modiano tem uma escrita lúgubre, monotemática, saudosista, características que não agradam a todos. Eu não posso dizer que seus livros sejam maravilhosos e marcantes, mas há neles um quê de beleza suficientemente grande para instigar a caminhada por Paris e as muitas memórias encravadas por suas ruas. Vale!
“No meio da noite, em plena tempestade, quando se perde noção da terra, é a presença e a voz dos flamingos que orienta os pescadores perdidos” (Posição Kindle 1426/57%).
“Face à neblina, nessa espera, me perguntei se a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria sido o último voo do flamingo. Ainda assim, me deixei quieto, sentado. Na espera de um outro tempo. Até que escutei a canção de minha mãe, essa que ela entoava para que os flamingos empurrassem o sol do outro lado do mundo” (Posição Kindle 2365/95%).
Meu primeiro contato com a escrita do moçambicano Mia Couto foi em 2016, quando li “Jesusalém” (no Brasil, o título ficou como sendo “Antes de nascer o mundo”). Já deu, naquela experiência, para perceber que Mia Couto se utiliza de neologismos que, misturados aos dizeres locais num português mais europeu para contar suas histórias, tem muito de fábula.
Em “O último voo do flamingo” não é diferente: aquele eterno tom de fábula, mesmo que a história pareça pilheiresca ou mergulhe no suspense, você é atropelado pelo eterno tom de fábula, tanta que é difícil separar o que é sério do que é humor ou crítica.
Logo no início do romance, um acontecimento aparentemente trágico prende logo o leitor: num país africano fictício, soldados da ONU explodem-se, assim, sem mais nem menos, fato que não só chama a atenção dos moradores locais como também de prepostos externos. Para entender o estranho fenômeno, é convocado um especialista da ONU, o italiano Massimo Risi, que tem a missão de estudar e documentar os eventos extraordinários, para no final remeter o relatório a seus superiores.
Bueno.
A partir daí, Couto vai desenvolvendo uma narrativa que mistura assuntos políticos (o chefe de Estado que tenta impedir a intromissão europeia em seus domínios), magia, cultura local, poesia e provérbios populares.
Os personagens também seguem a mesma linha, o narrador e designado tradutor local, que acompanha Massimo em sua missão, entre curandeiros, mortos que ainda convivem com vivos e uma infinidade de feitiços que acometem mulheres e homens, deixando-os velhos, “explodíveis “… Vamos caminhando para o final para, ora bolas, entender o porquê das explosões. É quando, a meu ver, o livro vai perdendo vigor, estofo, fica demasiado lento e até, em algumas partes, repetitivo e macilento.
Me recordo vivamente que Jesusalém me cansou na leitura. O último voo do flamingo, apesar de ser bem mais leve, até mesmo mais liricamente bonito, não chegou a me impressionar tanto quanto gostaria, afinal é um título que venho tentando ler desde bom par de anos. Não que o livro seja ruim, repito. Mas, diferente do realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez, aquela perfeita enxurrada de palavras, de adjetivos milimetricamente bem construídos que impressiona sempre, a escrita fabular de Mia Couto, até o momento, deixa a desejar.
Por que escrever? – Conversas e ensaios sobre literatura – 1960-2013 [2017]
Orig. Why Write?
Philip Roth (🇺🇸, 1933-2018)
Companhia das Letras, 2022, 568p
Trad. Jorio Dauster
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“Escrever para mim não é uma coisa natural, que eu simplesmente vou fazendo, como um peixe nada ou um pássaro voa. É algo feito sob uma espécie de provocação, uma urgência especial. É a transformação, mediante uma personificação complexa, de uma urgência pessoal num ato público (nós dois sentidos da palavra “ato”)” (Posição Kindle 2612/34%).
“A única leitura que chega perto da ideal é a que faz o próprio escritor. Todas as demais são um pouco surpreendentes, para usar minha palavra, ou ‘equivocadas’, para usar sua expressão, o que não significa que a leitura seja superficial ou burra, e sim que foi determinada por formação, ideologia, sensibilidade e outros fatores que caracterizam o leitor” (Posição Kindle 2993/39%).
Às vésperas de 19 de março de 2022, data em que, se vivo, Philip Roth completaria 89 anos de idade, encerro a deleitosa leitura de “Por que escrever?”, densa coletânea de ensaios e entrevistas do grande autor norte-americano, desaparecido em maio de 2018.
Os textos reunidos neste volume abarcam o período que vai de 1960, onde encontramos um Roth jovem, mas já famoso e consagrado, e vai até 2013, um ano após o romancista ter anunciado sua aposentaria, mas deixando um legado literário que inegavelmente compõe o melhor da literatura do século XX. Sua pirâmide literária, iniciada com a publicação da coletâneas contos “Adeus, Columbus”, de 1959, e findada com “Nêmesis”, de 2010, é um primor das letras, composto por cerca de 31 livros com os quais o autor ganhou fama, dinheiro e reconhecimento, assim como também problemas.
Roth produziu livros que abordam temas sensíveis, repletos de tabus, ligados à condição judaica, à decrepitude física e sexual e a finitude da vida do homem. Seus romances são povoados de figuras masculinas problemáticas, claudicantes, constantemente bombardeados pela obrigação de serem perfeitos, bem sucedidos, potentes sexualmente. Não por isso, Roth é considerado por muitos como misógino, já que a figura feminina é posta quase sempre secundariamente. À exceção de Lucy Nelson, de “Quando ela era boa”, todos os livros de Roth têm como personagens principais masculinos.
O que muita gente não sabe (ou por ignorância ou por leviandade) é que no universo rothiano o homem nunca se dá bem. Ele vive mal, numa crise constante, tem medo de morrer, vê as marcas indeléveis do tempo destruindo seu ideal de sonho perfeito, sua virilidade sendo consumida pelo câncer, pela impotência e pela incontinência urinária, seus ideais despedaçados pela incerteza resultante da implosão dos dilemas sociais e políticos nos quais os livros são ambientados. São, na verdade, uma feroz crítica ao chamado sonho americano, que vendia a esperança do sucesso certo e, por isso, buscavam retirar as camadas de pintura que metamorfoseavam de belo o mais feio lado do ideário americano.
Com tantas oposições, Roth passou mais de meio século se defendendo das acusações de anti-semitismo, misoginia e libertinagem. Mediante entrevistas e ensaios, buscou desmistificar os diversos e falsos simbolismos atribuídos erroneamente a sua obra, desfeito tantas pechas a si atribuídas, provando que, na verdade, ele só quis produzir, enquanto a saúde e o vigor não lhe faltassem, boa literatura. E que literatura produziu, não?
Apesar de suspeito, não posso mitigar o imenso entusiasmo que tenho sempre que leio Roth ou converso sobre seus livros (na verdade sinto falta de mais contato com interlocutores com quem possa conversar sobre os seus livros…). Isso porque, após me ter imposto a solitária e deleitosa — mas não fácil! — tarefa de ler cerca de 21 livros de Philip Roth, em ordem cronológica de publicação, posso reiterar com conhecimento de causa que Philip Roth é parte da curta lista de grandes nomes da literatura de todos os tempos. Os quase sete meses em que fui lendo todos esses livros mais que me convenceram que um autor americano possa ter produzido uma prosa envolvente, inteligente, de um estofo que você facilmente encontra num Garcia Márquez, num Vargas Llosa, num Jorge Amado, num Machado de Assis, num John Updike, num Saul Bellow, num Bernard Mallamud, num Javier Marías, só para citar os escritores modernos.
No texto não-ficcional de Roth o leitor se depara com o rosto por trás da máscara, aquele que concebeu um Michey Sabbat, um Alexander Portnoy, um David Kepesh, um Sueco Levov, um Coleman Silk, um Ira Ringold e um Nathan Zuckerman, o escritor-observador, o fantasma que se recolhe para falar dos seus alvos jamais atingidos, idealizados como sendo homens a cujos adjetivos o próprio Zuckerman nunca terá. E Roth tem muito de Zuckerman mas Zuckerman tem muito mais de Roth, pois o autor, ao contrário do que a gente pensa, nem sempre se vê compelido a se dar às suas páginas para que todo o resto funcione.
“Por que escrever?” é justamente para trazer esta e outras respostas sobre o seu processo de escrita, as influências extrínsecas e a motivação reacionária que servem de combustível para o ato de escrever, de “lutar com a palavra”, no dizer do próprio Roth. Ele conta um pouco de suas amizades com outros escritores, de como tomou partido a favor dos escritores dissidentes de Praga, da sua busca por mais facetas de Kafka, das confusões que o cacetearam por meio século de atividade literária, das inspirações para escrever, sempre entremeando suas impressões do mundo à sua volta, comprimido no estreito universo da Newark de sua infância. Enfim, é leitura obrigatória para se aprofundar na literatura de Philip Roth, um passo a mais no conhecimento da vida e obra desse escritor que tanto fez e deixou no mundo literário, laureando-o com diversos prêmios (exceção do Nobel) e uma existência certamente dicotômica, pelo menos para as vozes algozes que duramente o criticaram. Ainda bem que, a despeito destes, a história provou estarem errados.
“E na manhã seguinte foi a mesma coisa, aquilo não teve mais fim, num perpétuo trovejar polifônico sob o frio bem instalado. Canhão trovejando à maneira de baixo contínuo, morteiros de todos os calibres explodindo pelos ares ou em terra, balas que sibilam, estalam, suspiram ou miam conforme a trajetória, metralhadoras, granadas e lança-chamas, a ameaça vem de toda parte: de cima, com os aviões e os tiros dos obuseiros, da frente, com a artilharia inimiga, e mesmo de baixo, quando, acreditando aproveitar um momento de calmaria no fundo dá trincheira onde se tenta dormir, ouve-se o inimigo que cavouca surdamente, abrindo túneis para instalar minas e aniquilar toda a trincheira, com quem estiver nela” (pág. 81/82).
Em mais uma leitura sobre a guerra, neste caso também, como na história do bom soldado Svejka, a primeira grande guerra e, diferente do tom excesivamente jocoso daquele livro, em “14”, o leitor se depara com uma potente descrição do conflito. Um pequeno recorte, aliás, onde, sob a lente atenta do narrador, acompanhamos o início do conflito na França, quando se iniciaram as convocações para o front.
Centrado no personagem Anthime, o livro vai descrevendo o dia a dia dos soldados, desde a ordem convocatória até os primeiros embates no teatro de operações, contra o exército alemão. Apesar de linear, Echenoz, esse escritor que me surpreendeu com este relato, conseguiu unir a frieza da situação com a beleza por trás dos detalhes, desde o fulgor brilhante dos objetos metálicos carregados pelos soldados quanto a sombria expetativa de retorno a uma “vida norma”.
O autor consegue equilibrar tragédia e esperança, rotina e recomeço a um dos mais nefastos momentos da história humana, convergindo neste livro curto mas de páginas tocantes, findado com a mágica e certa certeza de a vida segue seu rumo. É como aquela história do terreno seco, encravado por ranhuras sob um sol inclemente: até ali é possível que nasça uma bela flor. Que livro!
Orig. Osudy dobrého vojáka Švejka za světové války
Jaroslav Hašek (🇨🇿, 1883-1923)
Alfaguara, 2014, 682p.
Trad. Luís Carlos Cabral
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“— Então o senhor é o tal do Švejk?
— Acho que devo ser — respondeu Švejk. — Meu pai se chamava Švejk e minha mãe era a senhora Švejková. Não posso envergonhar meus pais renegando meu nome” (pág. 33/34).
O bom soldado Švejk, como aparece em algumas traduções, é o longo – e incompleto – relato do personagem homônimo, um sujeito azarado que, envolvido nos conflitos que deram causa à Primeira Grande Guerra, passa à margem da história, com seu jeito peculiar de ser e de irritar quem teve a desventura de conhecê-lo.
À medida que ia lendo o livro, mais de uma vez, rindo à beça – pois estamos diante de um sátira épica – não pude deixar de ver em Švejk uma versão europeizada do Forrest Gump, guardadas as devidas proporções. Isso porque Švejk é o típico anti-herói, um quase idiota que se mete e cria confusões hilárias e exasperantes, ao tempo em que sua postura impassível e serena o fazem viver quase com facilidade um dos momentos mais tenebrosos da história, que foi a Primeira Guerra Mundial.
Para muitos, pode parecer que Švejk é apenas um idiota que cai de paraquedas no meio do conflito bélico, mas, podemos ver que Hašek, ao compor sua obra — que, ficou incompleta (seria uma trilogia!), quis ironizar a bestialidade do conflito, criticar e denunciar os regimes autoritários, então em voga.
À parte da crítica velada, comum aos escritores tchecos, o soldado Švejk se torna um personagem inesquecível por suas longas histórias paralelas em resposta a qualquer pergunta, à forma invertida com que ele realiza as missões que lhe confiam, e a esse universo paralelo onde parece viver, bem semelhante ao contador de histórias Gump.
Por fim, acho que antes de Švejk, somente “A relíquia”, de Eça de Queiroz, havia me feito rir tanto numa leitura. Vale!
“Aos velhos, a morte, aos jovens, o amor; a morte, uma única vez, o amor, infinitas vezes” (pág 94).
Este é um pequeno grande romance, um pequeno grande livro! Considerado um clássico da literatura japonesa, Kawabata operou uma espécie de bordel a cujos serviços fornecem a idosos a possibilidade de passar a noite com jovens virgens adormecidas sob efeito de algum tipo de narcótico.
A ideia do Nobel de 1968, conforme li em reviews sobre o livro de Kawabata, foi muito bem aproveitada por García Márquez no também excelente “Memória de minhas putas tristes” (que aliás li findando o ano de 2021) mas nesse clássico especificamente foram abordados alguns temas complexos como o erotismo na terceira idade, a iminência da morte bem como a sensualidade e a perversão.
Somos guiados pela narração em terceira pessoa que nos conta a experiência do protagonista do livro, Eguchi, um senhor de 67 anos que, ao contrário dos visitantes habituais da casa, ainda se mantém sexualmente ativo e que passa algumas noites fortuitas na casa. Ali há regras a serem seguidas: apesar de poderem dormir com as jovens nuas, tocá-las, jamais podem concretizar o ato sexual. Para Eguchi é um acréscimo na triste iminência que o aguarda, quando está às portas da decadência física, fato que o unirá à situação de certa forma humilhante dos demais frequentadores, que têm de se contentar com um resquício de uma juventude há muito perdida.
É um cenário certamente triste mas é neste ínterim, nas quatro ou cinco noites que Eguchi passa ao lado de jovens, uma a cada noite, que as impressões que o acometem ali o faz reviver suas próprias memórias emotivas. Lembranças de ex-amantes, de mulheres que ele conheceu desde sua juventude como que são revividas a cada toque, cheiro, imagem que ele vai extraindo daquelas noites banhadas pela luz carmesim. Para findar a sessão, o cliente toma dois comprimidos de sonífero e termina a noite literalmente dormindo até a manhã seguinte, quando é despertado pela governanta da casa. O interessante é que os clientes não tem contato nenhum com as jovens bem como com os seus pares, é tudo muito reservado e restrito a cada quarto.
O ponto alto do livro é a própria escrita de Kawabata, delicada, colorida e sensorialista, como as passagens onde o autor descreve os cheiros, as cores, as impressões visuais de Eguchi. Mais de uma vez lembrei das passagens descritivas de “Em louvor da sombra”, de outro grande escritor japonês, Junichiro Tanizaki, onde o autor narra as belezas das cores, das texturas dos objetos, as marcas do tempo, sob a penumbra. Também experimentei essa impressão no romance “O incolor Tsukuro Tazaki”, de Haruki Murakami, outro bom e honesto livro, que emoldura pelas letras a beleza do Japão. Parece que é uma marca da escrita oriental. Coisa fina.
Tudo isso para dizer o quanto gostei de ter lido o mestre Kawabata. No pacote, se juntaram à minha modesta biblioteca mais outros cinco romances dele, que possivelmente aparecerão por esse singelo espaço também em breve. Quiçá!
“A vantagem da medicina é poder ser quem quiser, santa, desonesta, anarquista, patriota, bipolar, batista ou ateia, penso e sinto o que eu quiser com estetoscópio no pescoço, quem trata não sou eu, é o protocolo, apenas seguir o roteiro da observação clínica, os casos são mais ou menos os mesmos” (pág. 92/iBooks).
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Enquanto estou eventualmente envolvido entre as páginas do longo “As aventuras do bom soldado Svejk” e a doce e nada produtiva preguiça do recesso acadêmico, só agora termino a primeira leitura do ano: “A pediatra”, um romance psicológico excepcional, muito bom mesmo, de autoria da escritora paulistana Andrea del Fuego, lançado ano passado.
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Como o próprio título, narra em intenso suspense a saga da Drª Cecília Tomé Vilela, uma pediatra que, inadvertidamente, odeia crianças e, por tabela, suas mães. Sim, é uma personagem complexa, digna de uma boa novela das oito, que chama mesmo a atenção pela coleção particular de preconceitos, narrados em primeira pessoa que tanto assustam quanto captam a atenção do leitor.
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Devota da “neonatologia” – cuidados especializados ao recém-nascido, torce o nariz para o parto humanizado, criando um dualismo opiniático sobre essas duas técnicas que são bem interessantes no romance. Mantém um caso com Celso, o marido de uma de suas ex-pacientes e é nesse cenário que Cecília vê seu castelo conceitual ruir ao se apegar a uma criança, no caso, Bruninho, filho de seu amante. É quando o romance fica mais visceral, mais intenso, onde a pediatra mesquinha e extremamente seca é tomada por uma obsessão que beira a psicopatia ao nutrir afeição pelo menino. Ela começa a enxergar na criança o filho que não teve e que, por motivos médicos, a torna titular da posição de mãe do rebento. Não sabemos se a pediatra “má” se tornou boa ou se somente uma nova faceta dos problemas emocionais que guiam Cecília afloraram, deixando-a ainda mais instável e irrequieta, condição que se exarceba ao final do romance, aberto de certa forma ao achismo do leitor, mas que coroa o livro com os presságios presentes nas paginas e que vão ganhando corpo à medida que o leitor vai sendo arrastado pelo caos da vida de Cecília.
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Mais não digo. O livro, para quem queira, pode ser lido de um único fôlego, tamanha a curiosidade que vai crescendo com os desmandos da pediatra. Mesmo para estes, vale experimentar essas páginas por si só e ver com os próprios olhos como uma escritora, ainda que jovem, pode enriquecer sobremaneira a prosa brasileira com um romance elétrico e acima da média. Palmas para ti, Andrea, de pé!