“(…) por isso eu digo: respeitem a água e aprendem a sua linguagem. Vamos escutar a voz dos rios, pois eles falam. Sejamos água, em matéria e espírito, em nossa movência e capacidade de mudar de rumo, ou estaremos perdidos” (Pag Kindle 15).
De Ailton Krenak eu já havia lido “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019) e “A vida não é útil” (2020), livros que, só agora percebo, curiosamente eu não resenhei. Que lástima!
Bom. Tanto lá nos volumes anteriores, quanto nesta reunião de textos seus, Krenak desfia uma forma originária de filosofia. Trazida da sabedoria indígena e aliada à sua própria vivência, suas palavras, muito mais que deliciosos e poéticos afrescos literários, traz sempre um alerta, uma cousa que cutuca, que incomoda deveras, uma mensagem que procura tirar o leitor – e consequentemente o ser parte de uma natureza agredida diuturnamente – da letargia à qual acabamos sendo formatados enquanto usuários abusivos dos recursos naturais.
É um livrinho que verdadeiramente faz pensar: por anos sendo educados para uma civilidade canhestra e totalmente questionável, esta geração estamos caminhando para um colapso comum, tão distantes estamos da voz da Gaia-mãe. O que Krenak escreve é, muito mais que desabafos e indignações, é um chamado conjunto para a responsabilização pelos danos praticados por anos de espoliação da riqueza que a terra dá mas que, na ânsia por mais e mais, a civilização a expõe ao último e quase iminente suspiro.
Quiçá que este mundo velho possa passar, mesmo que eu, tu, nós, passemos. Prossigamos, se possível for…
“Ele era o meu projeto, o meu caso, a minha missão. A arte dele, o meu trabalho e a nossa história eram uma só coisa. Se ele fracassasse, eu fracassava. Simples, então — nós íamos triunfar juntos” (Posição Kindle 3387/61%).
Ian McEwan nunca decepciona! Depois de ter lido alguns de seus livros (o último foi “A filha perdida”), eu só tenho colecionado uma considerável porção de boas páginas, de histórias cativantes, de personagens marcantes e inesquecíveis.
Serena, que dá nome ao volume, é a típica jovem inglesa, apaixonada por literatura. Filha de pais anglicanos, acaba fazendo um curso de matemática, tendo casos ora esparsos ora mais longos, até ser, por Tony, um desses romances e ele mesmo ex-agente do MI5, ser selecionada para trabalhar no serviço secreto britânico.
Sua primeira missão real é recrutar um escritor em provável ascensão, morador da Brighton (que todos ansiamos em algum momento da vida conhecer), e cujos contos atraem a atenção de Serena (e eventualmente sua cama também). Ele, Tom, não deve saber de onde vem o dinheiro que financiará o tão esperado romance, sua chef-d’œuvre, masterpiece ou magnum opus, cuja editora é na verdade uma fachada para o controle governamental e a disseminação de contrainformações sobre o que tem sido pensado na Inglaterra dos anos 60, quando o IRA começou a atuar.
Serena não só leva seu encargo a sério como meio que espera e acaba se envolvendo com Tom, num tórrido romance regado a noitadas nos pubs londrinos e intensas trocas intelectuais: eles leem os jornais, resolvem intricados jogos matemáticos, fazem amor de forma quase ininterrupta, comemoram o avanço do romance de Tom, ao qual Serena ainda não teve acesso. (Mais não conto para não estragar a experiência do novo leitor, que certamente se impressionará com a reviravolta que as páginas trarão em seu final…).
McEwan é um artesão e artista da palavra. Desde “Amor sem fim”, o primeiro livro dele que li, há pouco mais de uma década, fui me embriagando literalmente pelo mar de ideias e palavras de seus romances. Sua sensibilidade, uma certa inclinação para o trágico, o tabuleiro em que muitas de suas personagens são postas a andarem são só alguns dos aspectos que encontro facilmente em suas páginas. Serena foi um dos poucos livros que canhestramente avaliei como cinco estrelas. É um romance bonito, inteligente, cheio das conhecidas engrenagens usadas em livros que falam de livros, mas com o toque dele, marca própria que torna tudo escrito bem escrito.
E é, ainda, um livro bem atual, engajado (aliás como outros romances seus!) Uma mulher que se esperneia no universo da espionagem, dominado em sua maioria por homens. Serena não busca autoafirmação. Ela vai aprendendo a lidar com esse tipo de ambiente e o faz justamente com a delicadeza que virou sua marca própria. Não é uma feminista por assim dizer, embora saiba a hora de dizer não. Mas nela, o que mais encanta, é sua resiliência, a maneira como ela busca se adaptar ao amor. Não exita em se entregar, antes ama com sua inteligência e com sua alma! É, por si só, daquelas personagens que merecem não só um livro, mas uma série inteira, tamanha a complexidade com a qual foi concebida. É um livro excelente, que por si, já salvou meu 2024. Se vale? Oh, se vale!
“A armadura está vazia, não vazia como antes, esvaziada também daquele algo que se chamava o cavaleiro Agilulfo e que agora se dissolveu com uma gota no mar” (Posição Kindle 1709/91%).
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Italo Calvino escreveu o belíssimo “Se um viajante numa noite de inverno”, a saga de um leitor que descobre que o livro instigante que está lendo veio com defeito, faltando páginas. É um livro excelente, mágico, inteligente, necessário.
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Dele, ainda li o “A trilha dos ninhos de aranha”, uma leitura assim mais ou menos.
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Aqui entre os volumes intocados de minha biblioteca encaixotada – ai de mim! – também está o “As cidades invisíveis”, talvez o livro mais famoso do escritor italiano, um projeto de leitura ainda relegado a algum dia no incerto futuro…
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Cá n’O cavaleiro inexistente, Calvino opera uma obra de cavalaria, a meu ver, às avessas, já que temos um herói que na verdade não existe, que de certa forma habita uma imaculada armadura branca. Seu nome é bem pitoresco: Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, Cavaeiro de Selimpia Citerione. Possui um escudeiro, com alguma dificuldade mental, cujo nome depende do lugar onde a dupla se encontra, mas na maior parte da trama, o chamam Gurdulu.
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A estória, contada por uma monja, mais de uma vez se entranha por batalhas e desmandos nos tempos do imperador Carlos Magno. Como todo livro desta espécie, vagueia por virgens oprimidas, embates entre exércitos rivais, fala do dia a dia da tropa em seus longos bivaques. Sendo bem curta (são só 120 páginas), eu me deixei levar pela preguiça e acabei não buscando cousas que me dessem alguma ideia do momento em que Calvino escrevera sua epopeia. Logo, não sei exatamente qual sentido de tão peculiar existência, a do Agilulfo, mas cá comigo fiquei a pensar sobre a impessoalidade e suas ramificações. Nada digno de ganhar mais que uma ou duas frases, mas o abrupto desaparecimento de Agilulfo, como num passe de mágica, enraizou somente esta impressão em meu espírito, sobre como a gente existe muitas vezes enquanto esta existência satisfaz algum interesse de outrem.
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Quem sabe eu volte ao livro, numa possível releitura e tome coragem de adentrar mais sobre esta ideia. Agora, nesse instante, ficará somente esta intelecção, pequena semente extraída de um livro que, com pureza d’alma, não me impressionou muito. Paciência.
Confiteor: em matéria de poesia, me considero um inepto total! A minha lista de poetas e poesias lidas é magra demais para qualquer numerário.
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Então recordo os alegres dias, lá no passado, quando me deleitava com os versos do Poetinha – Vinicius de Moraes, no seu “Para viver um grande amor”. Houve ali, de cara, me recordo, uma identificação com aquelas linhas sentimentais ao extremo, perfeita simbiose para a época e para meu coração sôfrego de sentimento, quando eu claudicava escrevendo versos em busca de compor uma canção que acabaria nunca composta.
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De lá para cá, foi se alargando a frequência que busquei ler poesia. Talvez, algumas da antologia do cronista baiano Adroaldo Ribeiro Costa. Depois, não sei ao certo se me debrucei a algum poeta. em específico. Um verso aqui, outro acolá. Enfim, paciência.
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“Alguma poesia” é o primeiro livro publicado pelo escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade. São 49 poemas reunidos no volume, nesta novíssima edição da editora Record, que traz ao final um posfácio generoso, com cartas trocadas entro Drummond e Mario de Andrade, além de várias listas cronológicas da vida do poeta e os acontecimentos nacionais/internacionais paralelos.
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Os versos, aprendo, são eivados de traços do estilo em voga, muito europeizado, então combatido pela recém ocorrida Semana de Arte Moderna. Já eu, esse incauto leitor de versos, vejo alguma cousa bem abrasileirada neste estilo de verso livre, uma cadência musical, um balançar vagaroso como coqueiros levados pelo vento.
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Os poemas também têm um traço de tristeza e saudade em comum. Falam da inextricável passagem do tempo e os seus efeitos eternos. Falam de revoluções, insurreições, dos primeiros amores, da preguiça nada leviana do verso que se nega a materializar-se. Drummond tem uma pena original para falar das coisas de Minas, esse Estado que tanto admiro e que tanto gosto de visitar. E, mesmo apesar de não ser capaz de adentrar plenamente ao seu universo poético, é claro que essas páginas agradam, pela leveza, pelo simbolismo, pelo toque sutil, pela emoção evocada por sua leitura. Vale!
“Seriedade é algor tão frágil quanto um castelo de cartas; basta uma gargalhada para derrubar toda a estrutura” (Posição no Kindle 1375/60%).
Para resumir: Alina, sulina, acadêmica de história, trabalha produzindo vídeos de propaganda em São Paulo, tem uma vida insípida e, um belo dia sua rotina é mudada ao ser convocada pela polícia, que a inquire sobre um símbolo esquisito encontrado (ou descrito por elas, não sei bem) em várias pessoas supostamente desaparecidas, mas que reaparecem, todas apresentando um comportamento semelhante a zumbis e que levanta a suspeita da polícia sobre algum tipo de seita, cujos rituais tem deixado as pessoas assim. Alina não consegue saber de que se trata ou o que significa de fato o tal símbolo. Volta para sua vida morna mas decide buscar por conta própria as respostas para este mistério….
Não, você não está diante de um romance policial. E, a meu ver, nem mesmo um livro de suspense. Tão pouco um livro sobre ocultismo ou mesmo sobre transtornos psicológicos. “As perguntas”, do escritor brasileiro Antônio Xerxenesky é seguramente um dos livros mais mal escritos que já li nos últimos anos! Eu sei, você pode estar se perguntando porque então terminei esta leitura, sendo um livro ruim. Também pode tomar para si a máxima que sempre prego: a de que a cada livro ruim sendo lido, se deixa de se ler um livro bom…
Mas.
Não suficientemente satisfeito com minha impressão desta leitura, forjada a duras penas e na alta quilometragem que modestamente possuo ao ter trilhado autores grandiosos e mesmo bons livros escritos de escritores menores, quis saber como o Xerxenesky iria terminar esse livro curioso. E não poderia ter me decepcionado mais ainda, porque “As perguntas”, como o próprio título, mais dúvidas deixam que qualquer questionamento cabível, de como algo assim foi tão festejado à época do lançamento, lembro-me bem, e aplaudido por bocado de gente por aí (geralmente fujo de livros indicados do afã e das exarcebadas manifestações que se faz ao redor de seus lançamentos).
O autor peca em vários sentidos: na abrupta mudança de vozes narrativas, como se tencionasse dar uma sacudida no andamento do livro após uma dose cavalar de café; na própria construção da personagem Alina, que é um arremedo muito mal feito de uma mulher corroída por um mar de dores e inaptidões sociais, talvez porque estava na moda o estereótipo da pessoa perdida no mundo, desajustada e arrasada por uma grande perda familiar; nas descrições cansativas do que Alina vai “vendo” na passagem dos seus dias, fragmentos que certamente não fariam falta uma vez cortados do texto; uma aparente incerteza sobre qual caminho o autor quis trilhar, quando tentou se embrenhar no imenso universo de crenças e culturas brasileiras (a passagem do motorista de táxi, baiano de Cachoeira, foi uma tentativa falha, a meu ver, de dar algum estofo para falar da cultura yorubá); o próprio estilo do romance, uma hora vertendo para o policial, outra claudicando para o suspense, ambos falhos; a cena da busca da personagem por descobrir um segredo que a deixou com uma “marca” espiritual é sofrivelmente hilária, bem como a conversa com o tal magíster, o líder da reunião secreta, cujo final, terminado na interrupção assim do nada (creia: não é todo escritor que sabe deixar em suspenso um final de livro, ele precisa, antes, deixar as ferramentas para que o leitor possa se servir de opções de como a história termina!) é o pleno fechamento de um livro péssimo, ruim mesmo, mal estruturado, cuja citação no início desta mini-resenha, que a duras penas pincei no meio destas páginas, pode muito bem ser usada como a materialização deste projeto do Xerxenesky: nada mais que um castelo de cartas, derribado pela pretensão de se querer trilhar por um ambiente pouco conhecido. Paciência.
“Suponho que haja tantas histórias de fantasma porque os fantasmas dão forma, ainda que a forma instável de uma nuvem fugaz, a um fenômeno intrigante e paradoxal chamado “presença da ausência”. O caso do fantasma da mãe é óbvio — ao perder a mãe, o filho passa a senti-la mais presente do que nunca” (iBooks, pág 85).
Fui movido não só pela capa quanto pelo mote operado pelo Gustavo Bernardo, neste livro que não sei se é terror, suspense ou estória de fantasmas e que, com a mesma intensidade dessa incerteza, se estende se gostei ou não, terminada a leitura…
Iracema, este o nome da narradora, é psicanalista e vai contando para uma outra senhora, seus sucessos ao desenvolver sessões terapêuticas com Pedro Rocha, um idoso avassalado pela “presença da ausência” de dona Amélia, sua falecida mãe. Ela faz um duplo jogo de análises, uma hora se debruçando sobre as instabilidades de seu paciente, noutra deleitando o leitor com boas e honestas citações de bons livros.
À experiência da leitura, eu fui buscando perlustrar na memória livro de semelhante temática, guardadas as devidas proporções, que é o ‘O complexo de Portnoy’, o longo relato do tarado concupiscente de Roth, mas estranhamente Bernardo tomou minha atenção para longe da saga fescenina de Alex Portnoy, ora transitando sobre a identidade, a memória e a morte e seus efeitos. São logicamente temas caros, por cada ser é tratado com severidade, estranheza ou mesmo indiferença, se não fosse o caminho que todos trilhamos(aremos) mais cedo ou mais tarde.
Enfim.
Talvez por isso eu tenha conseguido chegar ao final da leitura, isso porque, não sei exatamente qual foi o objetivo que levou Bernardo a operar um final, diria eu, tão distoante (eu cá comigo não sei se o desejo de inovação nas letras fê-lo findar a estória dessa forma), o que não tira os louvores da obra. Mas, é só que não sei se o desfecho trazido no livro se adequa à complexidade do drama de Pedro, aliás, um drama mais comum e presente do que se imagina, ante sua visível dificuldade em conviver com as memórias da mãe autoritária e muitas vezes abusiva, dando espaço para uma conversa de fantasmas tão somente. Que todos necessitamos do perdão – bem como do auto-perdão – isso é fato, mas não sei se há muito o que fazer após ser lançada a flecha, quem dirá na dimensão desencarnada. Só por isso não convence. Enfim, paciência!
“Eu queria ser escritor. Mas junto com o desejo, viera a compreensão de que a literatura que me havia causado esse desejo era de outro mundo, muito distante do meu” (pág 15/iBooks).
Ah, férias…somente este hiato de trabalho e demais afazeres compreendidos no ano útil, para me permitir poder ler com vagar as coisas que há tanto quero lê-las. E nada como a celebrada condição de estar, ainda que momentaneamente, desligado desses afazeres e poder viver o deleite de ler um livro atrás do outro nesses dias brejeiros…
Sempre que posso, gosto de ler sobre livros, leitura e o ofício de escrever. É um universo instigante para mim o que pulula a cabeça do escritor, as gentes dos livros somos levados a crer num mar de palavras e ideias, uma mixórdia de temas que se misturam à própria vivência do escritor e que, uma vez deitados ao papel, se tornam arte, se tornam livros.
Vidiadhar Surajprasad Naipaul, ou, para ficar mais fácil, V. S. Naipaul, nascido na idílica Trinidad & Tobago, é um escritor que ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2001. Entre seus livros mais famoso estão “Os mímicos”, “Uma curva no rio” e “Uma casa para o Sr. Biswas”, livros que aliás os possuo e que estão já há algum tempo relegados à espera e à falta de lepidez de seu dono, para lê-los. Paciência.
Em “Ler e escrever”, são juntados três textos do autor: este que dá título ao livro, “O escritor e a Índia” (uma viagem que Naipaul fez em busca das suas raízes mais primárias) e o famoso “Dois mundos”, que trata do seu discurso quando laureado com o Nobel pela Academia, em 2001.
Bom, topei com este livro de bolso por acaso na loja de livros do iBooks, ainda enquanto lia o romance do Kawabata, minirresenhado ontem. Fiquei logo interessado em saber do universo criativo de um autor que tenho imensa vontade de ler algum de seus livros (quem sabe, não já emplaque um dos dele na próxima leitura?) e o que pude notar é que Naipaul teve lutas internas difíceis de lidar, já que, à medida em que foi amadurecendo seu estilo de escrita, concomitantemente, aumentava seu amadurecimento social.
Uma vez que Naipaul olhou com olhos críticos toda a história por trás das bases literárias, às quais foi apresentado ainda quando estudante de Trinidad, uma vez já vivendo em Londres, ele pode perceber um imenso hiato na qualidade e eficácia do ensino escolar de ambos os países – compreensivelmente, já que estamos falando de colônia e colonizador. A disparidade percebida por Naipaul não era somente racial ou étnica. A própria literatura da ilha e outras que posteriormente analisou, não eram de fato coerentes com a própria história de vida ali. Naipaul escreveria “Os mímicos” para justamente falar dessa falha, ‘um sentimento de vergonha e fantasia colonial, de impotentes mentindo sobre si mesmos e para si mesmos’.
O livro em si, de forma simples, muito entrega da vida intelectual de Naipaul e seu universo de criação literária. Vale a pena sua leitura principalmente por se debruçar sobre o problema da herança maldita relegada pelo processo colonizador, quando homens que se consideram superiores, invadem vidas e histórias e as tornam subalternas, danificando – por muito tempo, vê-se – aquela forma particular de se ver e de ver o mundo. Trágico, ainda que cômico.
“Há no mundo homens que se relacionam com mulheres que têm filhas e, pelas circunstâncias, acabam se apaixonando pelas jovens. Embora ainda se sentisse entorpecido pelos inebriantes abraços da viúva, seus sentimentos já poderiam ter migrado para a filha. Se não fora capaz de percebê-lo, teria então caído de fato na teia de uma maldição?” (pág 118).
Nesse pequeno romance Yasunari Kawabata, prêmio Nobel de 1968, opera uma complexa teia de relacionamentos controversos, onde o personagem central, Kikuji Mitani, se envolve com a Sra Ota, amante de seu falecido pai, ao tempo que se deixa ser ludibriado por outra integrante desse consórcio paterno de relações escusas, Sra Chikako.
No meio desta intrincada trama, em segundo plano o escritor japonês nos apresenta o belo e não menos complexo procedimento da cerimônia do chá, que à época da escrita do livro, já era uma tradição fadada à perdição. A “sado”, cerimônia de chá feita para receber convidados, é o plano de fundo onde a estória começa (tive de assistir vídeos do Youtube para entender como se dá essa cerimônia).
Do livro se percebe uma certa tentativa do autor em falar não só da transferência dos objetos decorativos mas também o emocional aos quais Kikuji está envolvido: como se abrisse mão do próprio destino, ele se vê enredado e fadado a levar os fardos das mulheres de seu pai concupiscente. Ao misturar uma cerimônia tradicionalíssima, amplamente cultuada e tida como “pura”, vemos que Kawabata buscava justamente mexer com esta ideia do singelo, do sagrado, da pureza, que se misturam ao profano para justamente exemplificar essa perda, tornando-a vulgar pelo mau uso.
Essas discrepâncias começam pelo próprio título do livro, “Mil tsurus”, que simboliza a ideia do casamento longevo e benfazejo, um ideal aliás que o próprio Kikuji parece jamais atingir, tamanho o seu envolvimento lascivo com as amantes de seu genitor, mesmo após descobrir que nutre um sentimento especial por Fumiko, filha da já falecida Sra Ota.
E é isso. Mil tsurus pode ser desafiador pela quantidade de informações e palavras acerca da cerimônia do chá, comuns aos orientais e estranhos ao Ocidente.
O livro merecidamente consta na lista 1001livros, é um exercício interessante não só sobre os princípios da cerimônia do chá (harmonia, respeito, pureza e senilidade) mas se debruça com muito apuro pelos polos distintos, ambivalentes, a saber a tradição X imoralidade, aceitável X reprovável, os quais são ideias discutidas neste romance bonito, aliás, como sempre é nos livros do Kawbata.
E mais uma vez eu me vejo só. A casa, que não é tão grande, fica imensa, o vazio que a preenche neste momento é muito maior que outras solidões que eu senti antes. Como da vez, lembrança tão remota quanto o passado, quando eu me via toda tarde sentado na pequena varanda aguardando alguém de quem não lembrava o rosto.
Desta vez é diferente. Eu sei exatamente quem se foi e me abandonou nesta casa. Ela, com quem construí as lembranças que agora me servem de vilões nesta solidão maldita que comprime o meu peito e me faz verter lágrimas por saber que, agora, o fim chegou, e que de agora em diante, terei de trilhar sozinho um caminho único, tão diferente dos tantos caminhos que sonhei para nós dois.
Eu tenho medo das sombras que já chegaram com a noite. Nelas se escondem os escombros e andrajos que me tornei. Daí o receio de dar de cara com tantos eus errantes, vadios, imperfeitos, eu só, na verdade. Pois esta a minha face, um emaranhado de vazios que se foram sucedendo nesta vida incompleta e cheia de nãos que me tornei.
O misto de raiva, impotência e dor que ameaça subir pela garganta e explodir em lágrimas e soluços, isso que faz sofrer mais. O único expectador, Thor, compreende com seu senso canino que algo de ruim se aproxima. Ele só pode me consolar encostando sua cabeça entre minhas mãos trêmulas, dá tão pouco mas que é o que me consola nessa hora negra. E de fato é o que enxergo, a certeza de que de agora em diante eu não mais saberei das tuas palavras, teus sorrisos e soluços, até de teus rancores. É nesta hora que olho ao redor, vejo tantas marcas, reflexos de nós dois nesta casa abruptamente esvaziada e engolida pela perdição. Só restou eu e um punhado de dias que formarão minha coleção particular de saudades.
Então, não me resta nada mais que partir.
Os livros estão empilhados. Coitados, eles nunca conhecerão a estante que sonhamos para eles; as fotos no nosso mural, elas nunca deixarão de ser instantâneos congelados na memória do celular ou nas lembranças que, aos poucos, desaparecerão. E é tão pouco o que tenho para levar, herança abreviada e exígua das poucas coisas que agora me representam.
Eu havia me prometido não permitir ser corroído nesta casa vazia. Como da vez em que você partiu sem mim, e soube – tão bem, né? – construir suas próprias lembranças e delas se refestelar. Mas dessa vez não: porque agora, sou eu que desisto de tudo, que abro mão justamente da presença que me faz falta neste hoje cinzento. Se foi por erro ou por incompreensão, eu só tenho a sentir. Estou cansado demais para me culpar ou achar quem leve a culpa. Porque, de alguma forma que não sei expressar, sempre acreditei que o que nos unia, nos ligava, nos tornava um, era poderoso demais para se permitir vencer pelos defeitos que trazemos em nossa bagagem. Que esse verbo que se fez sentimento, de fato nos uniria até o dia em que findaríamos desta realidade. Que a dor que agora sinto e comigo levo, nunca preencheria um coração, o meu, que, ainda que decepcionado, fraco, imperfeito, humano, buscou em você a minha melhor parte. “Mas eu estava tristemente enganado”…pq vc se negou e me negou o tudo que sempre fomos, mesmo com os equívocos que nos impediram de nos reconhecer. Eis o nosso erro, eis a nossa queda.
“(…) é um pouco como se eu não fosse eu mesmo, mas como se agora fizesse parte da criatura luminosa, que de algum modo não está mais brilhando em sua brancura, mas como se já não fosse mais uma criatura , mas apenas estivesse lá, sim, como apenas uma presença, e palavras como luminosa, como brancura, como brilhante, deixassem de fazer sentido, sim, é como se tudo já não fizesse sentido, e como se o sentido, sim, o sentido já não existisse, porque tudo apenas é, tudo é sentido” (pág 42).
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Tive de conferir alguma cousa do ganhador do Nobel de literatura de 2023, o norueguês Jon Fosse. Entre os dois livros aqui publicados, escolhi o de menor quantidade de páginas, este “Brancura”.
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Bom.
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Findada a leitura, não sei ao certo o que achar do livro. É uma história bem comum, essa de sair de nenhum lugar para se chegar a lugar algum. O leitor vai se embrenhando junto com o narrador inominado, sua agonia crescente ao se embrenhar, sem motivo algum, por uma floresta congelada. O suspense aumenta quando o carro enguiça preso na neve, ele desembarca e segue a pé por um emaranhado de galhos envoltos de água congelada e pedras úmidas e começa a “ver” algumas aparições que julga ser pessoas.
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O livro consegue incentivar a seguir o périplo canhestro do narrador com frases curtas, diretas e sem qualquer ponto de interrogação, e que se esmera a descrever seu medo crescente de morrer congelado e perdido na floresta a essa altura envolta na escuridão. Logo, percebe não estar inteiramente só, pois visualiza uma criatura humanoide envolta numa aura branca e brilhante que some e aparece com constância. A partir daí as páginas ganham pitadas de delírio, como se Fosse quisesse ou tencionasse descrever um homem em seu estágio espiritual, uma espécie de desencarnação em progresso. Enfim…
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Como disse no introito destas impressões, não sei exatamente o que pensar desta leitura. Ela me fez lembrar de um outro livrinho, lido já há alguns anos, “No mar”, do escritor holandês Toine Heijmans, relato de um náufrago com a mesma pegada deste curto livro do Fosse, ou seja, um homem solitário em sua pequenez diante a natureza lindamente monstruosa. Igualmente saí daquelas páginas com alguma pulga atrás da orelha, achei exageradas as manifestações dos leitores à época, bem como, diante de “Brancura”, achei um disparate que a mente por trás dessas páginas tenha logrado tamanha honraria, imbecilmente negada a colossos literários como Philip Roth e Thomas Bernhard.