
Leitura 29/2021
As intermitências da morte [2005]
José Saramago (Portugal, 1922-2010)
Companhia das Letras, 2017, 208p
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“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que sucedido um falecimento” (Posição Kindle 24/1%).
“Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua” (Posição Kindle 1921/71%).
De Saramago eu já havia lido “Ensaio sobre a cegueira”, um livro que com certeza quase todo mundo ao menos já assistiu ao filme. Daquelas páginas me marcaram o suspense, a angústia, o medo e o iminente caos na comunidade de “cegos”, na busca animalesca pela sobrevivência.
Já nesse Intermitências da Morte, o que vemos é um livro bem mais divertido, de certa forma mais leve, não fosse a temática canhestra. Conta como, de uma hora para a outra, sem explicação alguma, as pessoas pararam de morrer. E de como isso mexeu com o país fictício criado pelo gênio Saramago, que foi inundado por crises de fé, de economia (vide as casas funerárias, que deixaram de lucrar!), do mero desejo de deixar esta vida. Respostas foram buscadas pelas pessoas, que acorreram ao governo, às instituições, às agências funerárias, à “máphia” e, claro, à igreja, a quem quase todos atribuem a primazia das revelações do sobrenatural.
O texto, todo escrito de forma linear, vai narrando acontecimentos que se vão desenrolando até beirar ao realismo fantástico, ao absurdo, atribuindo traços humanos à culpada principal pelo caos que reina naquele país sem nome: a “morte”. Ela, com laivos de ditadora, com seus desejos caprichosos, resolve mudar sua tática, não só avisando antecipadamente os “eleitos” ao país dos pés-juntos enviando-lhes envelopes roxos com o aviso prévio de 7 dias, quanto a mostrar sua verdadeira face (é hilário as passagens em que Saramago descreve a figura comumente atribuída à morte, um velho esqueleto envolto num lençol munida de uma gadelha velha e enferrujada!) a fim de descobrir um mistério que acabou por usurpar seu poder de matar, certamente uma afronta à rainha dos finados, que resolve investigar pessoalmente estranho fenômeno!
Mais não irei contar, pois isso estragaria o final da estória, totalmente inusitada, totalmente tragicômica. Contudo, fica o registro da leitura de um livro perfeito, seja em suas frases tão belamente construídas quanto a genialidade de Saramago que enobrece – e tanto – as letras portuguesas. Nobel mais que merecido!
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