
Leitura 23/2021
Floresta escura [2017]
Orig. Forest Dark: A Novel
Nicole Krauss (Nova Iorque, 1974-)
Companhia das Letras, 2018, 304p
Trad. Sara Grünhagen
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“Em nossa visão das estrelas, encontramos uma medida de nossa própria incompletude, de nosso estado ainda inacabado, ou seja, de nosso potencial para mudar, ou mesmo de nos transformar. O fato de nossa espécie se distinguir das outras por nossa fome e capacidade de mudança tem tudo a ver com também sermos capazes de reconhecer os limites de nossa compreensão e de contemplar o insondável. Mas, em um multiverso, os conceitos de conhecido e desconhecido se tornam inúteis, pois tudo é igualmente conhecido e desconhecido” (Posição Kindle 593).
Se eu buscar na memória por romances que falam de fugas e reencontros, facilmente vou encontrar ali a fuga e a tragédia de Coelho Angstrom – o sublime personagem de John Updike, ao se deparar com a própria derrocada e seu mudo desespero ante a falha do corpo que tanto fez por si; ou o autoexílio ao qual se impôs Nathan Zuckerman, o sublime alter ego de Roth, e que o levou a viver longe da Manhattan caótica e sexualmente atraente que por anos o absorveu.
Essa digressão me assaltou várias vezes enquanto lia “Floresta Escura”, um notável romance da lavra da escritora americana Nicole Krauss. Nele, também encontramos doses cavalares de fuga mas também de transformação e recomeço ao contar, num misto de duas vozes, as trajetórias do advogado sessentão Jules Epstein e da própria autora, que se emula na trama para descrever a crise conjugal e criativa pela qual está passando.
Entre essa duas linhas, uma terceira emerge: Kafka,o grande Kafka, não teria falecido ainda jovem, como todos sabemos, mas, secretamente se mudado para Israel, onde em kibutzes e aldeias pode viver sua nova vida bucólica. Desse emaranhado, o leitor como que é inserido numa espécie de bifurcação onde, como uma das opções seguir e aceitar a realidade como é ou, na escolha do sentido inverso, o da tentativa de encontrar o que se está oculto nessa – como escreveu Krauss – “expansão infinita de incompreensão que cerca a minúscula ilha daquilo que conseguimos compreender”.
Essa frase potente me levou a outro livro lido recentemente (é maravilhoso como a boa literatura te leva a outras leituras e a outras possibilidades de leitura): “O Castelo”, romance inacabado de Kafka onde somos mergulhados num mar de devaneio, absurdo sob um enevoado cenário em torno da vila que rejeita K em seu inabalável anseio de conhecer Klamm, misterioso senhor daquelas terras surreais. No livro nada é entregue facilmente. Kafka usa um discurso aparentemente singelo para materializar um pano de fundo imerso em fumaça, uma cortina que por mais que tentemos apreender, mais obtusamente cegos nos tornamos, caso utilizemos as lentes erradas. Muitas vezes pensei em como foi Kafka foi maldoso nas páginas de “O Castelo”. Sobretudo pelo absurdo exacerbado a que o leitor é exposto enquanto tenta entender porque K não consegue chegar ao interior do Castelo. Até entender que o escritor queria, na verdade, que puséssemos os olhos não no objeto em si, mas nas ferramentas para sua compreensão.
É basicamente, penso eu, o que “Floresta Escura” intenta: levar o leitor a uma gradual expansão das fronteiras herméticas da forma, sobretudo no que se refere a vida como a conhecemos e entendemos e, a partir desse exercício epistemológico, perceber que as ilusões que porventura enxergamos pode muito bem ser a ante-sala daquilo que exatamente estamos vendo. Não à-toa o próprio Roth tenha se referido a este livro como “um romance brilhante”. Porque, de fato é!
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