
Leitura 48/2020
O corpo em que nascí [2011]
Orig. El cuerpo en que nací
Guadalupe Nettel (MEX, 1973-)
Rocco, 2013, 224 p.
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“É estranho, mas desde que comecei com isso, tenho a impressão de estar desaparecendo. Não só tenho me dado conta de quão incorpóreos e voláteis são todos esses eventos cuja existência, na maioria dos casos, não se pode provar de forma alguma, se trata também de algo físico. Em certos momentos totalmente imprevisíveis, as partes de meu corpo me produzem uma sensação de inquietante estranheza, como se pertencessem a uma pessoa que nem sequer conheço”
(Posição Kindle 1960).
“Pôr em questão os acontecimentos de uma vida, a veracidade de nossa própria história, além de exasperador, deve ter algo de saudável e bom. Talvez seja normal essa impressão contínua de estar perdendo o solo, talvez sejam as certezas que tenho sobre mim mesma e as pessoas que me têm rodeado sempre as que estão desaparecendo. Meu próprio corpo, que desde há muitos anos tem constituído o único vínculo crível com a realidade, me parece agora como um veículo em decomposição, um trem em que vim montada ao longo de tanto tempo, submetida a uma viagem muito veloz mas também a uma inevitável decadência” (Posição Kindle 2031).
Topei com o nome de Guadalupe Nettel quando zapeava pelo catálogo da editora espanhola Anagrama e, lendo algumas sinopses, coloquei mentalmente a escritora mexicana na extensa e infindável lista de autores de quen quero ler algo. Movido mais uma vez por uma sinopse, desta vez da Amazon, resolvi ler “O corpo em que nasci” pelo relato inicial da menina que detinha um problema óptico e os tratamentos que teve de se submeter para não perder a visão do olho direito.
No “O corpo em que nascí”, Nettel fia, em uma espécie de sessão psicanalítica, suas memórias (me remeteu, guardadas as devidas proporções, ao longo monólogo de Alexander Portnoy de O complexo de Portnoy, de Philip Roth) que vão desde a infância até a vida adulta. É uma espécie de bildungsroman que busca no próprio reencontro lá para frente, na vida adulta, o reflexo no espelho do peso, da ponderação e das conclusões de uma jovem que, criada num ambiente pululante de pulsões sociais e políticas, a cujo constante choque, inevitavelmente imprimiram profundas cicatrizes na autora.
A Cidade do México das décadas de 70 e 80, delineada no romance, como qualquer grande centro, atravessou um tempo de transformações e experiências sociais, quase sempre rechaçadas por regimes totalitários que impuseram sua mão de ferro. A profunda crise econômica vivida à época, as catástrofes naturais de um país atravessado por furacões e terremotos, a marcante estada em terras francesas, de certa forma libertária para Nettel pelas descobertas que viveu, a volta ao início de tudo quando o fio da infância encontra a autora já madura e com uma visão alargada da sua própria significação, são alguns dos aperitivos literários encontrados nesse livro que mistura memória, política, drogas, amor e libertação. “O corpo em que nascí” entra para a lista de bons achados deste ano mais tenebroso que suave. Vale!
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