
Leitura 27/2020
A mercadoria mais preciosa [2019]
Orig. La Plus Précieuse des merchandises
Jean-Claude Grumberg (França, 1939-)
Todavia, 2019, 80 p.
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“Vencera a morte, salvara a filha perdida com aquele gesto insensato, derrotara a monstruosa indústria da morte. Tivera a coragem de dar um último olhar para sua filhinha reencontrada e reperdida para sempre” (iBooks, pg 72.)
Um casal de velhos lenhadores, moradores da beira de uma floresta por onde passava regularmente um trem, ao qual chamavam de trem de mercadorias, e de onde a pobre lenhadora, um dia após tanta esperança, lhe é jogado um embrulho. Dentro dele, uma criança recém-nascida, uma menina de olhos claros e berro potente.
É assim que o escritor francês começa seu livro, na suas palavras uma fábula. Nas não mais que 80 páginas, o que o leitor tem é o relato da fealdade da guerra coberta por camadas de inocência ou, quem sabe talvez, uma forma distinta de olhar o terror com alguma veia de esperança. Porque o que o escritor traz em sua fábula é um pedaço da gigantesca máquina de produção de morte nazista, na segunda grande guerra.
Capaz de dar um tom absurdamente conformador ao relato, Grumberg conta a história de um casal judeu que, uma vez transportados para um campo de concentração, tem a difícil decisão de “abandonar” um dos filhos gêmeos que acabara de nascer. O pai, tolhido pelas lágrimas de desespero ante o destino terrível que os aguarda, escolhe ao acaso um dos gêmeos, não sabe se o menino ou a menina, e a deposita em um trecho onde o trem diminui a velocidade da escala da morte, esperando que ao menos aquela semente berrante possa ter um destino diferente que o de seus pais e irmão. A menina – sabemos depois – acaba sendo resgatada pela velha e pobre lenhadora, que a acolhe e dá os cuidados de uma mãe amorosa, ainda que poucos e escassos. Anos depois, com a chegada do exército russo que, estupefatos, presenciaram o horror dos campos de concentração, o pai, se vendo liberto do horror nazista ao qual só pode sobreviver por milagre, reencontra sua menina, num acaso composta pela vida…
O leitor é simplesmente tragado pela estorieta. Grumberg, que perdeu os avós e os pais para as inclementes torres de fumaça humana dos campos nazistas, mostra a coragem de uma vez mais, creio, olhar para aquela mancha terrível da história humana, que ceifara parte de sua família, e dela extrair um belo conto, uma fábula, povoado por personagens sem nome mas com sentimentos mais que humanos, mais que reais. Eleva pela escrita o poder restaurador do amor, que tudo suporta, tudo crê, tudo espera.
À medida que ia lendo e sendo carcomido por tão dolorida estória, ia pensando nos tantos escritores que lidaram com essa mesma via crucis: Primo Levi e Aharon Appelfeld, dois grandes escritores que viveram o horror do campo de concentração, este último, aliás, escreveu um romance instigador, o Badenheim 1939, um balneário que acaba se tornando um pogrom judeu sem que seus moradores, embevecidos pelas águas termais e calmantes, o percebessem. Levi descreveria em “É isto um homem?” o dia a dia para conseguir sobreviver em um campo nazista. Eles e tantos outros escritores buscaram nas letras uma espécie de resignação, de paz para com o passado para o grande mal causado por seu semelhante, e que acabaram se tornando obras primas da literatura, que merecem ser lidos.
Quanto ao livro de Grumberg, é uma leitura que vai tocar qualquer um que a queira ler. É um livro tão real que até parece uma fábula. A definição fica por sua conta. Vale!
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