
Leitura 19/2020 [Lista 1001 livros]
O mundo se despedaça [1958]
Orig. Things fall apart
Chinua Achebe (Nigéria, 1930-2013)
Companhia das Letras, 2009, 240 p.
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“O homem branco é muito esperto. Chegou calma e pacificamente com sua religião. Nós achamos graça nas bobagens deles e permitimos que ficasse em nossa terra. Agora, ele conquistou até nossos irmãos, e o nosso clã já não pode atuar como tal. Ele cortou com uma faca o que nos mantinha unidos, e nós nos despedaçamos” (Pág. no iBooks 200).
O grande ganhador do Oscar 2020, o excelente filme oriental “Parasitas”, muito mais que mero entretenimento tão comum à maioria dos enlatados do cinema norte-americano, traz uma temática profunda e assaz filosófica, onde é tratado o sentido do verdadeiro valor de uma pessoa. Ou mesmo o quanto ela não vale para seu semelhante.
Semelhante reflexão, aliás, dessa vez oriunda de outra parte do mundo, é a temática trazida por “O mundo se despedaça”, o grande livro do escritor nigeriano Chinua Achebe. Nele, o autor conta a história da saga de Okonkwo, um líder e guerreiro da etnia “ibo”, que luta para manter a harmonia de seu povo e impedir a gradual desintegração da vida de sua tribo natal, Umuófia, que acabaria sendo vitimada pela onda colonizadora europeia.
Toda a vida ritualística da tribo era mantida pelos costumes passados de geração em geração dos quais Okonkwo é, possível dizer, talvez o último remanescente de uma época perdida. Isso porque a harmonia do povo é desestabilizada pela chegada dos missionários europeus e seus seguidores, que trazem consigo uma nova fé num único deus e que se contrapõe com o bastião de entidades adorados pelos moradores de Umuófia. O patriarca vê toda a cultura que trouxera desde o berço ser, aos poucos, engolida pela nova religião do homem branco, que aos poucos vai amealhando os integrantes da tribo, que veem nascer ainda novas instituições como a escola, a lei e a polícia.
Okonkwo tenta sensibilizar seu povo a se voltarem para os costumes de seus ancestrais, mas percebe que é voto vencido, principalmente quando vê seu filho primogênito se tornar um dos novos cristãos da comunidade fundada em Umuófia. Nada lhe resta, senão se resignar com uma herança cultural e religiosa que, afinal, ninguém mais valoriza…
O livro é cru e rico em detalhes ao descrever os inúmeros rituais praticados pela tribo de Okonkwo. Num deles, é narrado a maneira como os ibos se livram de crianças gêmeas, consideradas como entes malignos, a cuja desgraça creem ter de ser extirpada do meio do povo. As crianças amaldiçoadas são retalhadas a facão por um ancião escalado para tal, e lançadas na “floresta maldita”, onde creem ser a morada dos espíritos que necessitavam ter sua fúria aplacada. Passagens belas também abundantes, como as festas de casamento, os duelos pelo privilégio de fazerem parte da liderança do grupo e a atuação dos curandeiros ante as inúmeras enfermidades e que mostram toda uma cultura própria de alguns povos africanos e como foram sendo varridas e esquecidas pela chegada da colonização. Isso faz-nos pensar até que ponto é válido imprimir sob o outro aquilo que consideramos ser o melhor e o certo, ao invés de respeitar o limite do outro em sua opinião, cultura e herança de vida. Ou mesmo valorizar o diferente em sua subjetividade, sua unicidade, como a experiência mostrada no filme “Parasitas”.
Ter lido este livro foi uma experiência inigualável. O escritor nigeriano não deixa de fazer troça com as caricaturais intenções do colonizador e com o desejo do ibo em se parecer com aquele que acaba por crer ser superior a si (vide a capa do livro!). Também não deixa de narrar até que ponto é legítimo lutar por aquilo que se acredita, mesmo que esta luta seja vazia de propósitos e ineficaz. É, de fato, uma leitura instigante, sobretudo para estes dias onde a razão imposta do outro parece repetir a desgraça trazida pela colonização a Okonkwo e sua Umuófia. Vale!
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