
Leitura 16/2020
Memórias do subsolo [1864]
Orig. Zapíski iz podpólia
Fiódor Dostoiévski (URSS, 1821-1881)
Editora 34, 2009, 152 p.
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“(…) desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais outros menos. Desacostumamo-nos mesmo a tal ponto que sentimos por vezes certa repulsa pela ‘vida viva’, e achamos intolerável que alguém a lembre a nós” (pág. 146).
O que mais me espanta na prosa de Dostoiévski é sua capacidade de construção do absurdo. Outro dia, estava folheando as páginas iniciais de “Os possessos”, ainda não lido, e me chamou a atenção para o episódio em que um dos personagens quer explicar algo a seu interlocutor e, quando este aproxima a orelha para a confidência, aquele tasca-lhe uma bela mordida na orelha!
Mas vim de dois outros livros do autor russo, o Crime e castigo, que li já alguns anos na tela diminuta de um iPhone 4S, e o Noites brancas, pequeno, romântico, mas um livro que sempre me enternece pelo caráter simplório daqueles que amam sem nunca terem seu objeto de devoção conquistados…
Mas em Memórias do subsolo, o que vemos é o lado obscuro, a voz crua e eivada de qualquer bondade do protagonista, que vai fiando suas memórias, seus percalços, suas mazelas, para no fim perceber que a tal “vida viva” que ora enxerga em meio à bruma de sua fala sombria, é um ideal ultrapassado, e ele não exita em criticá-la.
Esse discurso pessimista, desesperançado e irônico dá o tom de quase todo o livro, que é dividido em duas partes, “O subsolo” e “A propósito da neve molhada”.
Nas duas partes o homem do subsolo vai destrinchando sua visão miserável e incolor da vida. São espúrias as suas palavras, elas se voltam para si próprias, desconstróem, ameaçam, infligem, criam uma nódoa difícil de absorver tamanha a dicotomia entre as breves páginas e a densidade da fala do personagem. Ele busca dar ares de normalidade a seu trato social com ex-colegas de escola. Experimenta o sentimento de ajudar a pobre prostituta a largar a “vida fácil”, para no momento seguinte a esculachar impiedosamente. Insulta veemente o mordomo que o serve e por quem nutre desprezo. Mas essas manifestações sao fugidias e efêmeras. Porque decide expor toda a feiúra de sua personalidade, não teme falar o que pensa, espalha mal-estar e cinismo.
O livro é um belo exercício de existencialismo, um experimento que, apesar de árdua a sua leitura, é recompensador, por aguçar no leitor a importância que há na vida real, ainda que com tantos e tamanhos problemas, uma beleza que vale ser buscada. Não posso dizer que seja uma leitura agradável, mas quem dirá que somente de flores é feita nossa caminhada? Se é Dostoiévski, vale!
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