
Lista #1001livros ✅
Título lido: A festa do bode
Título original: La Fiesta del Chivo
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Lançamento: 2000
Esta edição: 2012
Editora: Alfaguara
Páginas: 456
Classificação: 5/5
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“Foi sacudido por um frêmito de raiva. Podia dominar os homens, por de joelhos três milhões de dominicanos, mas não podia controlar o próprio esfíncter” (Posição no Kindle 2204/31%).
“(…) seus olhos corriam pelo abdômen um tanto flácido, o púbis embranquecido, o pequeno sexo morto e as pernas lisas. Aquele era o Generalíssimo, o Benfeitor da Pátria, o Pai da Pátria Nova, o Restaurador da Independência Financeira. Este era o Chefe a quem o seu pai havia servido com devoção e lealdade durante trinta anos, a quem dera o mais delicado do presentes: a própria filha de quatorze anos” (Posição no Kindle 6999/97%).
Rafael Leônidas Trujillo Molina, que figura como o personagem central de “A festa do Bode”, existiu de verdade, mas sua existência é uma mancha na humanidade jamais esquecida. Foi ele o responsável pelas mais dramáticas e absurdas atrocidades ocorridas na República Dominicana nos 31 anos em que foi ditador na ilha caribenha, de 1930 a 1961, quando foi assassinado.
Trujillo, chamado de Benfeitor por um inescrupuloso séquito de serviçais, não só matou e torturou seus oponentes. É também responsável por milhares de estupros e outras selvagerias que o tornam, se dúvida, uma das faces do mal no mundo, desde que este existe.
Vargas Llosa esteve na ilha, onde pode entrevistar várias pessoas que foram, de certa forma, vítimas do “Bode”(outro apelidado dado ao ditador, de conotação sexual). O resultado foi este livro surpreendente, que narra em dois braços principais o último dia de vida de Trujillo, o 30 de maio de 1961, e as lembranças de Urania Cabral, 35 anos depois, quando refaz o doloroso caminho da memória até a nefasta noite em que foi violentada pelo ditador. Vargas Llosa, o notável escritor de “Travessuras da Menina Má” e “Elogio da madrasta”, descreve com maestria soberba nos três pontos de vista em que o livro vai nos levando: seu último dia de vida, sob a ótica do próprio Trujillo, um setentão que sofre com problemas na próstata o que lhe causa uma desagradável incontinência urinária; sob a ótica do grupo de antitrujillistas que viria a matar o ditador, desde a concepção do plano até a caçada orquestrada por Ramfis Trujillo, o filho mais velho, que os submeteram a brutais torturas até matar todos; e da própria Urania, que narra para a irmã e sobrinhas de seu pai, o ex-senador trujillista Agustín Cabral, a fatídica noite em que Trujillo a violenta, sob consentimento deste.
O livro é forte, não mede palavras para descrever as torturas, os assassinatos (o famoso caso das irmãs Mirabal são um exemplo), os estupros de meninas que chegaram às mãos do Bode ou por força ou concedidas por pais ansiosos por agradar o presidente, bem como todo o aparelho do Estado criado por Trujillo para alicerçar sua ditadura. Naturalmente, a pequena ilha caribenha acabaria chamando a atenção da ONU e dos Estados Unidos além de nações próximas como Cuba, vindo a sofrer, por isso, pesadas sanções comerciais e diplomáticas devido aos desmandos e violações aos direitos humanos que Trujillo praticara.
Acabei sendo levado ao livro por outro da soberba lista de 1001 livros essenciais para ler antes de morrer, no caso o “A fantástica vida breve de Oscar Wao”, também mini-resenhado aqui, onde o autor, o escritor Junot Diaz, faz diversas alusões ao regime trujillista e ao próprio livro de Llosa. Nada como ser levado pela maré embevecedora da literatura…
“A festa do Bode” é um livro essencial, uma verdadeira reportagem literária sobre a ditadura nefasta de Trujillo. Suas páginas mostram sem dó o lado obscuro de um regime duradouro, nascido e mantido quase intacto numa improvável ilha, tão distante e díspar de países tradicionais, com mais história, como a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini. É inegável que Llosa, um sagaz reconstrutor de história, como fez com a Guerra de Canudos em “A guerra do fim do mundo” (livro que aliás, teve mais repercussão sobre o episódio que o próprio relato de Euclides da Cunha) fez um trabalho primoroso, ainda que sobre um assunto que ainda causa tanto horror e estupefação. Vale!
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