Olho para trás e vejo-a uma vez mais, no emaranhado confuso das lembranças, envolta pelos mistos comuns à memória. A Casa dos meus idílios, o lugar mágico onde viveu o trio mais excêntrico que jamais existiu.
A magia ali existente até hoje me traga com seus fortes tentáculos, e posso enxergá-la na época eternamente retratada na lembrança, o cheiro dos flamboyants e castanholas tomando a tarde preguiçosa, as sombras das árvores mutantes do vento e a fachada borrada da casa.
Em baixo da velha castanholeira os três amigos sentados, discutindo as grandes questões existenciais, às vezes afogueadas por altas doses de álcool, ora sorvendo o fumegante café, aliás, sempre presente na Casa.
Posso ver também as noites na vaguidão da lembrança, quando a música está sendo construída pelo velho violão de Alberto, a voz grave e rouca de Jairo dando vida aos versos amorfos de minha caneta.
Posso, principalmente, escutar a canção que era nós, quando, sozinho e deitado, punha o rádio amarelo de pilhas junto ao ouvido e me via em algum lugar de Roma, aquelas mãos diminutas entre as minhas, e como sendo minhas as palavras de Emílio Pericolli em seu “Al di lá…
***
Em algum momento a Casa se desconstruiu, perdeu sua força e com ela, os insignes moradores. Jairo, abocanhado pela maré de sonhos, tantos e tamanhos, perdeu-se no caldaloso emaranhado de suas próprias incertezas. Quanto a mim, sou o derradeiro, o rebelde, aquele que se nega a desvencilhar-se das lembranças da Casa, como que impedindo que a fímbria saudade daqueles dias seja aniquilada e destruída. Sou a própria simbiose do que dela restou; sou um sombrio emissário do pesado legado de nossas e minhas dores, quando aa negras garras da noite fria alumiada pela pequena lâmpada que marcou o fim de algo que nunca chegou a começar, quando os olhos amados não mais me viam com o amor que tencionei ter…
Mas, e você, Alberto? Qual a sua perdição? Você que foi a alegria da Casa, que parecia ser quem menos levaria esse fardo que tanto me suga, que tanto inspira as palavras dessa nefasta crônica. Você que, com os acordes cada vez mais aprimorados, trazia a doce dissonância que nos tirava da letargia e fazia com que voltássemos a acreditar em nossa arte canhestra. Alberto, que tanto nos aculturou, com suas atentas leituras, seus jargões filosóficos, seus maravilhosos insights, sua nobre inocência.
Mas sei exatamente qual o momento de sua queda: como um indigesto Midas trouxemos a ruína a você, nosso toque trouxe a corrupção da sua percepção e então conheceste o bem e o mal. O Alberto menino, com sua flauta doce, sua sensibilidade musical, seu potencial bem maior que o de Jairo e o meu, onde foste acabar?…
Alberto, o que fez contigo?
11/03/2017 por Paulo Sousa
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