PABLO TEM UM LIVRO nas mãos. É um pequeno grande romance de Dostoiévski, Noites Brancas. Não é exatamente o conteúdo que lhe chama a atenção, embora tantas vezes o tenha lido (era capaz de citar de memória várias passagens, para ele sublimes e necessárias). Mas a dedicatória na primeira página, escrita naquela inconfundível caligrafia de escolar, miúda e caprichada. Sentado no apartamento vazio, diante daquelas intragáveis palavras, a sensação de que seu mundo desabara é mais latente, um insistente sussurro, vindo diretamente daquelas breves palavras, como que a bradar sua dor.
“Para Pablo. Espero que goste, mas quem dera ser eu dona dessa resposta…
Sempre com amor, E.”
Ele tem diante de si a prova da sua própria ruína. Contempla num misto de êxtase e culpa aquela sentença enigmática – ela sabia – só ele seria capaz de decifrar. E por isso mesmo não tira os olhos daquela funesta dedicatória, que encerra o momento em que sua inconformidade se tornou maior do que ela…
Impossível não recordar os momentos felizes. Como da vez em que a levara para ver o por do sol no cais (um de seus lugares favoritos) e acabaram surpreendidos com uma forte e rápida chuva que os deixou encharcados; ou da vez que tocou ao piano uma música composta de improviso, os dedos nervosos engolindo as notas, em dado momento sendo interrompidos pelo toque de suas mãos. Uma ponta de sorriso ameaça aparecer, mas logo morre, sufocado pelo momento do fim. E então vê diante de si a noite fria, a lâmpada solitária embalada pelo vento, as palavras de desespero jamais ditas, de como virou-lhe as costas enterrando de vez a última esperança que havia, o exato instante em que tudo pifara, como toda sua vida. Enterrou-se num bar, um dos poucos abertos àquela hora e bebeu até adormecer, sozinho no balcão, numa tentativa de afogar em álcool toda aquela dor que consumia seu ser…
Ao voltar, não era só o apartamento que estava vazio: gavetas, cabides, armários, a estante desvencilhada dos porta-retratos e livros prediletos. Dali em diante teria de seguir só…
A tarde vai-se findando. Algumas sombras vão ficando espessas e maiores. Pablo sente-se exausto; sentia-se sempre exausto, as forças exauridas pelas lembranças, agora trazidas por aquela dedicatória cruel que tanto e nada tem a dizer. Por um instante pensou em Jairo, nas suas grandes frases de efeito, ditas com seu peculiar sotaque paulistano. Muitas acabou ele mesmo incorporando, citando-as como jargões que encerravam grandes e profundos dilemas. Foi uma deles, certamente, a base originária daquela dedicatória sombria e extravagante, muitas vezes repetida por Pablo: “quem dera fôssemos donos de nossas próprias respostas”. Não podia haver nada mais sábio.
Ótimo texto Pê! Muito bom!
Vai ficar na minha memória “quem dera fôssemos donos de nossas próprias respostas”
Abraços
Obrg, Rodrigão! Sua presença por aqui me é cara!