ME LEMBRO BEM: foi nos idos da década de 80 que o fato aconteceu. Mas, a despeito de tão grande e grave desgosto, aquela foi uma época particularmente feliz para mim. Não havia as preocupações que me torram a paciência; de difícil mesmo só as horas livres para brincar, extraordinariamente encurtadas pelo período escolar.
Ainda assim, parecia que os dias caminhavam num passo frouxo, fazendo com que a época mais esperada do ano – o Natal, evidentemente – demorasse uma eternidade para chegar. Significando que os tão desejados brinquedos novos não estariam nas mãos de crianças ávidas antes do recesso escolar!
Mas, enfim, o dia chegou. E com o início daquela manhã nublada eu me deparei com o embrulho enfeitado com palhaços de narizes rosados. Nem deu tempo de examinar seu conteúdo, já fui logo rasgando o invólucro que envolvia meu brinquedo ardentemente esperado. Meus olhos de guri faminto brilharam ainda mais ao contemplar nas minhas mãos aquela miniatura de carro. Um carrinho! E como era lindo, o meu carrinho… com aquelas rodinhas que giravam, as portas que abriam e tinha até um bonequinho sentado ao volante! De fato, foi um Natal diferente, o daquele ano. Papai Noel definitivamente não se esquecera de mim…
Mas logo as férias de fim de ano foram se findando, o novo ano escolar apontava, então eu aproveitava o máximo para brincar com meu carrinho irado. Os guris da rua onde residia ficavam babando o carrinho que só eu tinha, como se ele fosse um delicioso sorvete de chocolate com cobertura de doce de leite. Mas apenas um grupo seleto – de amigos – tinha acesso ao carrinho, quando no máximo eu permitia que tocassem nele. Por isso, passei a ser uma espécie de figura pública do bairro, sendo invejado pelos outros garotos, que desejavam brincar com meu “veículo particular”.
Foi num fim de manhã que a tragédia aconteceu: eu brincava solenemente em frente à casa de meus pais, como sempre, rodeado pelos garotos que pleiteavam alguns instantes com o brinquedo. Não sei porquê, adentrei a casa, buscar algo ou fazer algo, disso não me lembro bem. E, de súbito, um frio correu-me à espinha quando me lembrei de ter deixado o carrinho na calçada de casa. Corri o mais que pude até chegar portas afora mas…
Tarde demais! O carrinho, o meu carrinho querido fora surrupiado. Ao mesmo tempo que sentia os olhos encherem-se de lágrimas de raiva e desespero, disse os mais diversos impropérios (possíveis para um guri de minha idade) aos garotos que ali estavam, na minha opinião todos suspeitos daquele ato tão nefasto. Em vão. Não saberia descrever o cinzento dos dias seguintes sem a companhia do meu carrinho. As aulas recomeçaram, mas então eu já era um guri sorumbático.
* * *
Meses se passaram. Perdera de todo a esperança de encontrar meu carrinho. E foi que meu pai foi visitar um amigo seu, que morava três quarteirões rua acima. Me levou consigo. O amigo nos levou ao seu quintal, bem abastecido de árvores frondosas. A cerca de arame farpado dividia o terreno com o campinho onde jogávamos nossas peladas. Bem rente à cerca havia um monte de coisas velhas, mas algo me chamou a atenção. Fui lá conferir até me dar conta de que era a carcaça de um brinquedo velho e bem maltratado. Tomei-o em minhas mãos, a a certeza já rente aos meus olhos: meu carrinho, antes furtado num fim de manhã dos anos 80 acabara tendo um fim trágico: mais um pedaço de mim, da minha infância quase perdido, que se definhara nas mãos gatunas de algum guri de índole má, perdido ali naquele montão de coisas imprestáveis…
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