ALBERTO ENCONTROU PABLO dormindo no sofá, o exemplar de capa vermelha de O vermelho e o negro, de Stendhal, pousado sobre o peito sonolento do amigo.
Olhou em volta. A quitinete onde Pablo vivia sempre fora um pandemônio, mas do jeito que estava parecia mais os despojos decrépitos pós guerra. Cartazes de bandas de rock espalhadas pelas paredes. Várias xícaras manchadas de café sobre a mesinha de centro. Ao pé do sofá uma garrafa de Don Arturo tinto pela metade. Parece que a noite fora longa para o seu amigo. Algumas Le Monde Diplomatique abertas em páginas específicas, denunciavam que Pablo vivia, nos últimos meses, dedicando-se a política externa.
O amigo estava uma lástima: Pablo jamais gostara de usar barba, mas a sua parecia ter dias. Usava uma camiseta rota, uma calça de pijama amarrotada, mostrando claramente que havia dias estava com aquela roupa.
Ei, Pablo, acorde, chamou-o tocando-o no ombro. O máximo que conseguiu foi um “hum?” e uma mudança de posição. Desistiu.
Sentou-se na única poltrona do cubículo onde Pablo vivia, apanhou uns jornais atrasados, folheou-os sem interesse. Pensou em ir até a cozinha e fazer café. Enquanto enchia a cafeteira com água não pode deixar de rir consigo mesmo de como seu amigo deixara de viver como alguém normal. “Desistir-se”, como o próprio Pablo gostava de dizer.
Dos três amigos da velha casa dos idílios, Pablo era o que parecia poder ter um futuro promissor. Desde cedo decidira dedicar-se aos estudos, encontrar um emprego formal, constituir família, essas coisas. Mas, ao invés, afundara no precipício de uma angústia de origem ignota a qual nunca comentava. Alberto percebia que o amigo tornara-se refém de fantasmas implacáveis. Preferia gastar seus dias de forma deplorável, lendo livros estranhos, escrevendo coisas sem nexo. A novidade era o atual gosto pelas revistas de política internacional, que sempre fora objeto de suas críticas intolerantes.
Voltando para a sala, onde o amigo roncava baixo, viu em cima do aparador um exemplar bem gasto de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Lembrava-se vagamente que Pablo muitas vezes citava trechos daquele livro, como se fosse um mantra especial. Folheou-o rapidamente, até encontrar uma página sublinhada de caneta azul, com um comentário logo abaixo, em vermelho. Pablo adorava ler com duas canetas ao seu alcance: uma azul, com a qual marcava os trechos que mais lhe chamavam a atenção; e uma vermelha, que utilizava para fazer comentários marginais nas páginas. O próprio Alberto já tentara copiar essa mania, mas com total fracasso, haja vista sua falta de método.
O trecho marcado dizia: “São precisamente as respostas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência”.
Em vermelho, Pablo anotara: “Aqueles que, de si mesmos desistiram, serão incapazes de conhecerem-se, de notarem a existência de suas fronteiras, pois negaram legar ao mundo a marca da sua passagem por ele, a saber, os detalhes”.
Putz!, pensou Alberto. Pablo, filósofo? Meneou a cabeça por alguns instantes, antes de pensar que o amigo jamais dera atenção a suas citações dos clássicos. E pensar que ele nunca quis me ouvir falar de filosofia perto dele…
Mas, em se tratando de Pablo…
Ah meu amigo! Como sempre um prazer ler seus textos cada vez melhores.
Na minha opinião Pablo é um filósofo sim e dos bons!
Um grande abraço!
A recíproca sempre foi verdadeira…
Pablo, como você mesmo disse, é um ícone pop. Com direito a doses exageradas de auto-análise.
Ab.