Difícil tarefa. Olho com uma estranha onda de carinho o quarto apinhado de objetos que me acompanham há muito tempo. Verdadeiros companheiros de vida, todos estes livros, cadernos da época escolar, badulaques colhidos aqui e acolá, tudo permeado por uma carga sentimental, alusão de um tempo que se foi…
Não é tarefa fácil, afinal, cada objeto ali contém em si mesmo um pouco de mim e de dias antigos do passado. São verdadeiras evidências da minha efêmera passagem por esta vida; testemunhas oculares de minhas escolhas, meus erros (muitos, inclusive) e quimeras. Mas terei que cumprir a contragosto o ato de desfazer-me de tanta velharia.
Começo. Apanho um caderno cheio de poeira. As páginas amarelecidas ainda contêm nitidamente minha caligrafia caprichosamente redonda. E, como se tivesse tocado uma tecla do smartfone da memória, é aberto uma janela para o meu passado escolar. Me vejo novamente guri, o rosto contendo ainda um olhar sonhador, inquieto, atento a tudo. E com esta visão onírica vislumbro também o prédio acinzentado do Estefânia Conrado, o colégio onde estudei e descobri, pela primeira vez, o amor.
Viro mais algumas páginas, observo com interesse o que contém ali. Ao fazê-lo a visão daqueles dias vão ficando mais nítidas, como um quadro que recebesse tintas mais fortes de um minucioso pintor. E percebo que refazer os caminhos da memória não é algo fácil. Principalmente porque nesse caminho não encontrei somente risos e luz, mas sombras e espessas nuvens…
Mais à frente vejo algo escrito numa página perdida no meio das outras. Esboço um sorriso triste. É um trecho de Al dilà, bolero de Emilio Pericolli que, à época, ouvia num radinho de pilha, sonhando ter o amor da garota dos meus sonhos pueris. Muitos anos depois, ainda ouço esta bella canzione, imortalizada no meu peito e neste pequeno excerto de um passado não tão antigo…
No meu caderno estava escrito: “Al di là della volta infinita/Al di là della vita/Ci sei tu/Al di là/Ci sei tu per me”. Algo como: “Além do horizonte/Além da vida/Estás tu, além/Estás tu para mim”. Muitas noites sonhei dizer, numa declaração de amor, estes mesmos versos à menina de cabelos ruivos, que fazia meu coraçao bater mais forte. Mas nunca consegui, tamanha a minha timidez.
Fechei o caderno vagarosamente, como se temesse perder cada detalhe daquelas lembranças. Talvez num outro dia tomasse coragem de jogar tudo fora. Não hoje.
Que lindo texto!
Pê, ao ler as linhas desse pequeno fragmento do teu passado, me remeteste juntamente ao meu…
Que bom que você não jogou fora essas valiosas lembranças
Abs, Robson.
É, meu caro Robson, tudo o que tenho comigo constitui inestimável legado: de dor, de saudade, idílios que me deram alegria e esperança…
Seria ato cruel o desfazer-se de todo esse material, afinal, seria jogar fora um pouco do eu próprio que ainda reside neste eu de hoje.
Obrigado por sua constante presença.